domingo, 27 de junho de 2010

Pô: heresia visual #5

FIOS SOLTOS

Cai-cai de fios de cabelos
carretel de prós e contras
teça a veste lenta da serenidade;
pontas de saudade, é verdade
fios que pinicam o peito sob a lã
Um vão entrementes
os anos se contam nos fios de cabelo
presos no pente sobre a prateleira

arranjo-os em linha
busco o fio da meada.



DANILO ZAMAI - 26/06/2010

sexta-feira, 11 de junho de 2010

À NOITE, NEM TODOS GATOS SÃO PARDOS

No silêncio da madrugada, quando o mundo parece dormir e o tempo parar, quando nada se espera que aconteça, um gato cruza o caminho de outro gato - ou poderia ser o contrário, uma vez que cada um está indo a algum lugar, não se sabe a quem o caminho pertence:
- Mais um folgado - diz o gato que primeiro percebe a aproximação do outro. Esse aí eu nunca vi por aqui.
- Chhhhhh! Shiiihhhhhhhhhhhhhh!
- Para, para! Olha só, é o seguinte: não tem nada pra você aqui, não, então pode ir embora!
- E quem você pensa que é pra me dizer onde eu posso ou não posso ir?
- Eu moro aqui perto e sei bem o que você procura; então este é meu território e blá, blá, blá...
- Olha só, eu também moro aqui. Veja, eu tenho coleira, tenho dono. E o que você está falando...? Você não tem coleira, como sei se você não é da rua?
- Coleira é pra meninha, não gosto dessas frescuras, não.
- "Menininha" é o cacete! Chhhhhhhhhhhhhhh! Shiiiiiiiiiiiihhhhhh!
- Para, para! Já chega! Onde é que você mora?
- Naquele apartamento ali. Sou novo por aqui, faz algumas semanas que mudei pra cá.
- Moro no primeiro andar também, naquela escada lá, mas eu gosto de sair à noite.
- Lá onde eu moro, eles deixam a janela aberta, daí eu dou uma saidinha também. O problema é que a porta fica fechada, não dá pra entrar quando bate a fome, e não adianta miar, porque ninguém atende.
- Tem um idiota que mora comigo, o cara parece um vampiro, fica a noite toda acordado; ele sempre sai pra fumar um cigarro - parece um relógio. É aí que eu aproveito pra mordiscar alguma coisa.
- Que mamata. Onde eu moro só tem criança e velho, ninguém fica acordado de madrugada.
- O que você pode fazer é ficar aqui a noite toda e entrar quando eles abrirem a porta de manhã pra trabalhar, jogar o lixo, sei lá... Mas evita de ficar miando por aí, porque você só vai atrair zica pra cá. Tem um monte de vagabundo que quer tirar uma boquinha da nossa ração e aqueles trouxas com quem eu moro são bem capazes de ficarem com dó e alimentarem esses malandros. Era só o que me faltava, um bando de gatos na porta de casa. Sem contar o risco de algum guarda aparecer pra chutar você...
- Ah, me liguei... É, tem mesmo uns guardinhas que ficam rondando por aí. E o que tem pra fazer aqui à noite?
- Eu gosto de aproveitar, sossegado, um capô de carro quentinho; mato umas baratas, corro atrás duns ratos, só pra sacanear. Mas já vou avisando: se for fazer isso, faça da sua escada pra lá.
- Mas daí só me fica um jardim! Pra lá tem o parquinho e os bueiros ficam todos debaixo do bloco.
- Tá bom, mas evita de caçar onde eu estiver caçando.
- Não, tudo bem. Puxa, eu adoro caçar barata!
- É, é mó barato mesmo. Eu finjo que acreditei que elas estão mortas e, quando menos esperam, eu dou outra patada.
- Acho que vou fazer aquilo que você disse e esperar alguém sair pra trabalhar pra entrar em casa.
- É uma boa...
(Silêncio constrangedor.)
- Bom, vou voltar lá pra minha escada, que daqui a pouco o idiota sai pra fumar.
- Vou dar uma volta pra conhecer a área.
- Beleza.
E o impossível ocorre.
- Se acontecer alguma coisa, dá um miado.
- Pode deixar.
- Falou.
- Falou.
           Quando nada parece acontecer, no silêncio da noite, o mundo parece dormir e o tempo parar, dois gatos viram amigos na madrugada.