quinta-feira, 18 de março de 2010

Maquinal



No momento em que o despertador o acordou para trabalhar, ainda deitado em sua cama, não encontrou nenhum motivo para que o fizesse, ou qual seria sua influência na cadeia da vida se assim procedesse. Sem achar a resposta – o que acontecia há anos -, seguiu com as tarefas diurnas básicas: escovar os dentes, tomar banho, vestir-se. O café da manhã teve de ser feito no caminho para o ponto de ônibus, não por pressa, mais por costume.

Observou a paisagem, que desconsertava os olhos por mais que diariamente a visse; não podia fixar-se a um ponto por mais que quisesse, assim como não conseguia compreender o seu funcionamento. Alcançava apenas uma macrovisão de todo aquele sistema colossal de vias, prédios, pessoas; e ao pensar nisso tudo, também não entendeu qual era o propósito daquele organismo, semelhante a um coral de concreto, móvel, estendendo-se por onde fosse possível, que abocanha qualquer vida que lhe estiver ao alcance.

Chegou ao trabalho com a sensação de indiferença paralisante. No entanto, não desejou voltar pra casa. Ficou como um sem-teto à frente do prédio do escritório até que um colega de trabalho o fizesse recordar de que devia entrar. Aquilo o acordou momentaneamente. Sem olhar quem lhe havia avisado, seguiu para o acesso de entrada dos funcionários, estranhando-se com a porta automática.

 Passou pelo segurança, o qual olhava insistentemente para dois vasos de plantas, a um canto da parede direita do átrio. Um pouco adiante, ainda observando o porteiro, esperou o elevador. Do térreo ao sétimo andar (o seu andar), ouviu não mais que meia dúzia de palavras, daqueles seus desconhecidos de mesmo prédio. Era necessário dizer algo, ainda que isso representasse uma mania que haviam adquirido há eras e tivessem se esquecido disso. Percebeu que todas aquelas seis palavras não saíram sem alguma dificuldade. A cada solavanco que a máquina dava ao alcançar ou deixar um andar pra trás, era capaz de se ouvir um suspiro constrito partir das pessoas, sendo cortado depois pelo gole surdo de medo quando o movimento recomeçava. A absolvição chegou junto com o sétimo andar apontado pelo ponteiro interior do elevador.

Ele se sentou em sua cadeira, virado para a sua cabine de trabalho. Havia um silêncio atípico para os dias de serviço dentro do escritório e os telefones pouco tocaram. Olhava com olhar de dúvida para o calhamaço de documentos espalhados pela mesa, cada pilha identificada com um papel de recado autoadesivo amarelo na página inicial, onde se podiam ver rabiscos feitos à pressa. Permaneceu com a visão durante uns longos minutos até que, por condicionamento, pegou a pilha mais próxima, a única com papel de recado vermelho, e seguiu para outra seção do mesmo piso. Dentro do cubículo da pequena sala, havia apenas uma máquina copiadora. Principiou a tirar as fotocópias, página por página, daquela pilha de papeis, sem se dar conta de que não repuseram a resma na fotocopiadora. Às vezes, atrevia-se a ver o que continham as páginas, perdia-se na confusão de signos aleatórios contidos nelas, sem êxito.

O processo de colocar, apertar o botão “copiar” e tirar as folhas consumiu um longo tempo, em que predominou o som do silêncio. Ao virar-se, presenciou um estranho quadro naquele andar: atrás de si, formara-se uma longa fila, que não murmurava nem reclamava de impaciência pelo tempo consumido; fora da sala, através do vidro, pode ver muitos outros funcionários a observar seus telefones, como se aguardassem uma ligação que era certa. Todas as pessoas - os da fila e os do telefone - carregavam um olhar vazio, uns olhos de ruína; uns para o chão, outros para o nada, numa espera certa. Não se dizia uma única palavra.

Depois desse panorama, deixou de lado a pilha de papéis e saiu do prédio, agora para sua verdadeira casa. Retomaria, a partir dali, uma outra forma maquinal de se viver; a mudança fundamental seria a simplificação da forma: sobreviver, comer, perpetuar.

*****

Este seria o primeiro conto da série... Não tem muita ação, é praticamente um texto descritivo, e por algum tempo considerei se ele deveria ou não ser descartado. Foi a mesma razão pela qual eu quase o descartei que me fez tomar a decisão de mantê-lo na série: como o desdobramento narrativo se dá na maior parte através da enumeração, passo a passo, da rotina dessa pessoa, o texto cumpriu a proposta (inclusive do título), sem que isso fosse totalmente premeditado.
   
Demorei um pouco para aceitar o conto, para gostar dele de verdade, mas depois, com um pouco de insistência, ele pareceu representar muito bem a rotina do dia-a-dia, quando parecemos estar ligados no piloto automático, sem mesmo prestar atenção no que fazemos (quanto menos refletir sobre o que fazemos). Conforme os outros textos foram surgindo, decidi que a personagem deste texto deveria surgir em algum outro momento da série, como quem nos empresta os olhos pra ver... Vamos ver!

terça-feira, 16 de março de 2010

Dois segundos



O pedido era simples, porém estranho: dois carros, que viriam de direções opostas, atingiriam velozmente seu corpo em cheio. Mas o plano não nascera assim tão grave: a princípio seria apenas um carro, numa velocidade relativamente baixa, para que seu corpo apenas sofresse algumas fraturas não muito sérias. Assim poderia ficar no mínimo um mês em casa, livre de compromissos da universidade, do emprego, e ainda não precisaria fazer nenhuma tarefa caseira. Só que o plano, como uma idéia de vida própria, foi crescendo; adicionando velocidade, adicionaria, conseqüentemente, mais dias em que poderia ficar incapacitado de suas tarefas. Por fim, os cálculos foram elevados a tal ponto, que já não bastava um único carro e, como resultado, estaria desobrigado de forma permanente de qualquer tarefa. A adição do segundo veículo era como para dar certeza de que o objetivo fosse concluído; quem nunca ouviu uma história de alguém que se jogou de uma janela, ficando aos cacos, mas que mesmo assim ainda sobreviveu?

Não houve dificuldade para encontrar voluntários para a experiência. Num primeiro momento, os dois amigos convidados hesitaram, preocupados com as contas que provavelmente teriam de prestar à polícia e à família do rapaz; no outro canto, muito mais atraente aos dois jovens, havia a curiosidade que mata - aquela curiosidade que leva as pessoas a experimentarem e depois refletirem. Combinaram, os dois, de instalarem pequenas câmeras de vídeo nos capôs dos carros, com a finalidade de depois dividirem a experiência com outras pessoas. Seria um daqueles vídeos chocantes da Internet.

No epicentro daquele acontecimento, o criador da idéia não sentia medo ou coisa parecida. De acordo com suas próprias estimativas, a dor, se houvesse, duraria ínfimos segundos; provável nem ouvisse o som da colisão dos carros chocando-se com seu corpo – talvez dois segundos. Posicionado no meio da avenida vazia, esperou pelos motoristas que nesse momento davam a partida.

Não houve roncar de motores. Bastou que a “vítima” levantasse a mão, com um sinal de positivo pelo polegar, para acelerarem os carros. Arrancou um, o segundo só após alguns centésimos, por reflexo da ação do primeiro. Os dois carros encontraram-se num estrondo. Os air-bags funcionaram exatamente como deveriam, mas os motoristas foram deixados atordoados no interior dos veículos. Do lado de fora é que acontecia o incrível: no instante da colisão, o corpo atingido por ambos os lados simultaneamente, expeliu a cabeça para o ar, feito uma rolha de champanhe sacudida.

E a cabeça voou alto. Num primeiro momento, ela observou a fumaça dos carros amassados que atingiram seu tronco; depois, os amigos a saírem embaralhados dos veículos. E continuou a subir. Viu a vizinhança curiosa do incidente; o bairro: reconheceu alguns prédios à volta. Enxergava mais à medida que subia: fábricas, ruas atoladas de carros, pessoas que se amontoavam nos semáforos, enfim, a cidade ruidosa. Os trabalhadores forneciam um quadro engraçado e triste, em movimentos compassados, grupos que iam e vinham para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo; reconhecíveis graças às roupas. Manadas de saltos altos desciam dos ônibus, ternos surgiam do metrô, calças jeans de todos os lugares. A cidade lhe parecia uma máquina, a qual depende de combustível para mover-se – aquelas pessoas o eram. Os prédios eram as bocas desse ser e estavam eternamente sedentas daquelas almas.

A cabeça continuou subindo e seu dono concluiu que a morte demorava mais do que havia imaginado, ou seriam aqueles últimos instantes mais longos justamente por serem os últimos? Não sabia. Trocou as análises desnecessárias àquela ocasião e voltou à realidade. Nessa desatenção, alcançou uma altura considerável. Estava entre dois paredões de nuvens. Acima dos cabelos, estavam flocos leves e claros, os quais se movimentavam com o soprar do vento; abaixo, sólida, uma parede de ares de concreto, escura, pesadamente marrom. Aquela devia ser a fronteira que divide o mundo dos homens do mundo celeste. A uns cem metros, os olhos divisaram uma série de chaminés de aço. As chaminés cuspiam os tijolos daquela parede de nuvem; parecidas com gargantas infernais, destituídas de cabeças.

O jovem principiou a perder altitude e “bum”! o pensamento foi instantâneo: aquelas eram gargantas sem cabeça, ele era todo cabeça. Com um torcer de orelhas para manipular a corrente de ar, desviou-se em direção da garganta mais próxima. O truque das orelhas funcionou surpreendentemente bem! Chegou na extremidade da garganta e, como esta arremessava fumaça, embaçados os olhos, errou o alvo. Foi parar dentro da borda, entalado.

Momento pavoroso! Havia feito os planos para uma partida rápida e indolor, e agora corria o risco de morrer asfixiado. É que agora toda a fumaça da chaminé entrava pela boca, nariz e até pelos ouvidos. Respirava de forma doente, com os olhos tumultuados, as ideias ganhando cores negras.

Acontecia também que a garganta respirava com dificuldade. O objeto entalado em seu interior impedia que os gases percorressem o trajeto habitual. Grande pressão acumulava no interior, pressionando o objeto intruso, até que não pode mais. E lá se foi, mais uma vez, cabeça para o alto, então com força redobrada.

Sem saber direito de seu estado, a cabeça indomável subia. Nem sequer viu a chaminé dando três ou quatro tossidas abaixo, retomando o ritmo normal. Passou despercebido pelas nuvens brancas. Voltou da inconsciência apenas quando atravessou a estratosfera, engoliu as nuvens que ainda estavam em sua boca e se viu morto... Um infinito de escuridão... As vistas, recuperando o foco, viu estrelas... a lua, e porque era então satélite terrestre, executou o movimento de rotação, no qual girou em torno do próprio eixo.

A imagem que se seguiu foi magnífica: lá estava a Terra, sem complexidade, viva, pulsante; mas era frágil, delicada e mais todos os sinônimos correlatos. E foi por conta daquela imagem que duas lágrimas azuis saíram de seu olho esquerdo; despregaram-se, entraram na órbita de seu pai, flutuaram feitos dois satélites em torno da cabeça.

Ficaria ali não fosse a gravidade, palavra esta que diverge da sensação que a envolvia, foi retornando a cabeça para seu planeta de origem.

A descida, resumidamente, foi nada mais que um flashback ao contrário, ou seja, foi a descida (nuvens brancas, chaminés, nuvem marrom, cidade...); seus satélites evaporaram-se na reentrada com a Terra. Porém, uma coisa não se mostrou exatamente igual: o povo da cidade estava estacado, carros parados – os semáforos ainda funcionavam. A cabeça encaixou no corpo a que lhe pertence e juntaram-se, cabeça e corpo, com a multidão silenciosa.


*****


          Este texto, escrito em 2007 ou 2008 - não tenho certeza -, faria parte de uma série de contos chamada "Era de Aquário", da qual acabei perdendo o interesse de finalizar. Lendo esses contos agora, percebo uma espontaneidade difícil de obter (até porque precisa ser algo muito natural e despretencioso), e é isto o que torna esses contos importantes pra mim.




Preciso relê-los, gastar um tempo neles e talvez terminar esta série.

sábado, 6 de março de 2010

Eternidade

Preciso agradecer ao Caio que na época de composição dos poemas visuais, que eu testava, me ajudou a montá-los no CorelDRAW, e essas sessões acabaram tornando-se aulas e suas lições eu agora uso constantemente quando o Bloco de Notas já não é suficiente para as ideias. Valeu Caio!








quinta-feira, 4 de março de 2010

O AGORA SEM HORA MARCADA

Quando despe os papéis que representa,
o que há de mais sujo fica à mostra,
e não é recomendável olhar o espelho,
não é o tipo de conselho
que agradaria a alguém.

Quando você retira o vício,
cada agulha tem um nome;
você se sente vazio,
vazio e sem ônibus de volta
Você se desprende do ciclo,
mas o mundo é que é a droga.

Sem efeitos que entorpecem,
a loucura bate à porta,
pronta pra ficar,
porque você é nada
e o nada desagrada...
Ela estará sempre lá fora,
olhando através das janelas,
das brechas do telhado;
mas você já é só janelas,
sem olhar pra ela.

Sorrisos, quando lhe falam,
você é só sorrisos;
quando chove,
você não é mais a pele que envolve,
é a gota enquanto chuva
que cai na testa e escorre,
sob o ponto de vista da nuvem;
você é a terra
entre os dedos do pé da serra
Você é música enquanto toca,
é o agora num calendário sem data,
é o som enquanto nota.


DANILO ZAMAI - 04/03/2010