terça-feira, 16 de março de 2010

Dois segundos



O pedido era simples, porém estranho: dois carros, que viriam de direções opostas, atingiriam velozmente seu corpo em cheio. Mas o plano não nascera assim tão grave: a princípio seria apenas um carro, numa velocidade relativamente baixa, para que seu corpo apenas sofresse algumas fraturas não muito sérias. Assim poderia ficar no mínimo um mês em casa, livre de compromissos da universidade, do emprego, e ainda não precisaria fazer nenhuma tarefa caseira. Só que o plano, como uma idéia de vida própria, foi crescendo; adicionando velocidade, adicionaria, conseqüentemente, mais dias em que poderia ficar incapacitado de suas tarefas. Por fim, os cálculos foram elevados a tal ponto, que já não bastava um único carro e, como resultado, estaria desobrigado de forma permanente de qualquer tarefa. A adição do segundo veículo era como para dar certeza de que o objetivo fosse concluído; quem nunca ouviu uma história de alguém que se jogou de uma janela, ficando aos cacos, mas que mesmo assim ainda sobreviveu?

Não houve dificuldade para encontrar voluntários para a experiência. Num primeiro momento, os dois amigos convidados hesitaram, preocupados com as contas que provavelmente teriam de prestar à polícia e à família do rapaz; no outro canto, muito mais atraente aos dois jovens, havia a curiosidade que mata - aquela curiosidade que leva as pessoas a experimentarem e depois refletirem. Combinaram, os dois, de instalarem pequenas câmeras de vídeo nos capôs dos carros, com a finalidade de depois dividirem a experiência com outras pessoas. Seria um daqueles vídeos chocantes da Internet.

No epicentro daquele acontecimento, o criador da idéia não sentia medo ou coisa parecida. De acordo com suas próprias estimativas, a dor, se houvesse, duraria ínfimos segundos; provável nem ouvisse o som da colisão dos carros chocando-se com seu corpo – talvez dois segundos. Posicionado no meio da avenida vazia, esperou pelos motoristas que nesse momento davam a partida.

Não houve roncar de motores. Bastou que a “vítima” levantasse a mão, com um sinal de positivo pelo polegar, para acelerarem os carros. Arrancou um, o segundo só após alguns centésimos, por reflexo da ação do primeiro. Os dois carros encontraram-se num estrondo. Os air-bags funcionaram exatamente como deveriam, mas os motoristas foram deixados atordoados no interior dos veículos. Do lado de fora é que acontecia o incrível: no instante da colisão, o corpo atingido por ambos os lados simultaneamente, expeliu a cabeça para o ar, feito uma rolha de champanhe sacudida.

E a cabeça voou alto. Num primeiro momento, ela observou a fumaça dos carros amassados que atingiram seu tronco; depois, os amigos a saírem embaralhados dos veículos. E continuou a subir. Viu a vizinhança curiosa do incidente; o bairro: reconheceu alguns prédios à volta. Enxergava mais à medida que subia: fábricas, ruas atoladas de carros, pessoas que se amontoavam nos semáforos, enfim, a cidade ruidosa. Os trabalhadores forneciam um quadro engraçado e triste, em movimentos compassados, grupos que iam e vinham para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo; reconhecíveis graças às roupas. Manadas de saltos altos desciam dos ônibus, ternos surgiam do metrô, calças jeans de todos os lugares. A cidade lhe parecia uma máquina, a qual depende de combustível para mover-se – aquelas pessoas o eram. Os prédios eram as bocas desse ser e estavam eternamente sedentas daquelas almas.

A cabeça continuou subindo e seu dono concluiu que a morte demorava mais do que havia imaginado, ou seriam aqueles últimos instantes mais longos justamente por serem os últimos? Não sabia. Trocou as análises desnecessárias àquela ocasião e voltou à realidade. Nessa desatenção, alcançou uma altura considerável. Estava entre dois paredões de nuvens. Acima dos cabelos, estavam flocos leves e claros, os quais se movimentavam com o soprar do vento; abaixo, sólida, uma parede de ares de concreto, escura, pesadamente marrom. Aquela devia ser a fronteira que divide o mundo dos homens do mundo celeste. A uns cem metros, os olhos divisaram uma série de chaminés de aço. As chaminés cuspiam os tijolos daquela parede de nuvem; parecidas com gargantas infernais, destituídas de cabeças.

O jovem principiou a perder altitude e “bum”! o pensamento foi instantâneo: aquelas eram gargantas sem cabeça, ele era todo cabeça. Com um torcer de orelhas para manipular a corrente de ar, desviou-se em direção da garganta mais próxima. O truque das orelhas funcionou surpreendentemente bem! Chegou na extremidade da garganta e, como esta arremessava fumaça, embaçados os olhos, errou o alvo. Foi parar dentro da borda, entalado.

Momento pavoroso! Havia feito os planos para uma partida rápida e indolor, e agora corria o risco de morrer asfixiado. É que agora toda a fumaça da chaminé entrava pela boca, nariz e até pelos ouvidos. Respirava de forma doente, com os olhos tumultuados, as ideias ganhando cores negras.

Acontecia também que a garganta respirava com dificuldade. O objeto entalado em seu interior impedia que os gases percorressem o trajeto habitual. Grande pressão acumulava no interior, pressionando o objeto intruso, até que não pode mais. E lá se foi, mais uma vez, cabeça para o alto, então com força redobrada.

Sem saber direito de seu estado, a cabeça indomável subia. Nem sequer viu a chaminé dando três ou quatro tossidas abaixo, retomando o ritmo normal. Passou despercebido pelas nuvens brancas. Voltou da inconsciência apenas quando atravessou a estratosfera, engoliu as nuvens que ainda estavam em sua boca e se viu morto... Um infinito de escuridão... As vistas, recuperando o foco, viu estrelas... a lua, e porque era então satélite terrestre, executou o movimento de rotação, no qual girou em torno do próprio eixo.

A imagem que se seguiu foi magnífica: lá estava a Terra, sem complexidade, viva, pulsante; mas era frágil, delicada e mais todos os sinônimos correlatos. E foi por conta daquela imagem que duas lágrimas azuis saíram de seu olho esquerdo; despregaram-se, entraram na órbita de seu pai, flutuaram feitos dois satélites em torno da cabeça.

Ficaria ali não fosse a gravidade, palavra esta que diverge da sensação que a envolvia, foi retornando a cabeça para seu planeta de origem.

A descida, resumidamente, foi nada mais que um flashback ao contrário, ou seja, foi a descida (nuvens brancas, chaminés, nuvem marrom, cidade...); seus satélites evaporaram-se na reentrada com a Terra. Porém, uma coisa não se mostrou exatamente igual: o povo da cidade estava estacado, carros parados – os semáforos ainda funcionavam. A cabeça encaixou no corpo a que lhe pertence e juntaram-se, cabeça e corpo, com a multidão silenciosa.


*****


          Este texto, escrito em 2007 ou 2008 - não tenho certeza -, faria parte de uma série de contos chamada "Era de Aquário", da qual acabei perdendo o interesse de finalizar. Lendo esses contos agora, percebo uma espontaneidade difícil de obter (até porque precisa ser algo muito natural e despretencioso), e é isto o que torna esses contos importantes pra mim.




Preciso relê-los, gastar um tempo neles e talvez terminar esta série.

5 comentários:

Unknown disse...

Danilo, adorei!!!!
Ficou muito booooooooooommmmm...vc está me surpreendendo a cada visita em seu blog....
Quero mais....rsrsrsrs
Bjs

J. Giglio disse...

curti pedófala.
muito bom merrmo, não devia ter aposentado estes contos, fique neles!

Gabi disse...

gostei...acho que vc também pode ser um poeta em prosa. :)

Unknown disse...

Nossa manu eu ja tinha lido esse texto , mais dessa vez ele me acertou em cheio ! Pirei , fui longe com essa cabeça ... rsrsrsr
continue assim cara .

Unknown disse...

de fato não deve parar com esta série.